GRASSHOPPER NIGHT
Uma Gonzo-Reportagem
“…a imperecível necessidade humana de viver em beleza.”
Johan Huizinga em “Homo Ludens”
(Ed. Perspectiva, pg. 71)
[youtube id=http://youtu.be/V3jCYm_QGZQ]
Paul McCartney teve que percorrer uma longa e tortuosa estrada até vir parar, com mais de 70 anos rodados pelas trilhas da vida, aqui nas terras dos Goyazes…
Em sua primeira infância, na Inglaterra de 1942, durante a 2ª Guerra Mundial, o garoto de Liverpool brincava pelos territórios bombardeados pelo III Reich, como ele mesmo narra no início do Beatles Anthology: “We played on bomb-sites a lot and I grew up thinking the word ‘bomb-site’ almost meant ‘playground’. Reminders of the war were all around…” (pg. 17).
Foi por pouco que Hitler e sua gangue de arianos genocidas não adicionaram ao seu horrendo catálogo de atrocidades a morte da família McCartney: estima-se que 4.000 pessoas morreram durante os ataques da Luftwaffe que ficaram conhecidos como Liverpool Blitz.
Filho de um pai protestante que tocava piano, e que desde o berço fez o pequeno Paul “mergulhar” no mundo do jazz e do folk, e de uma enfermeira católica, que sempre cuidou de sua saúde com muito esmero, McCartney desde cedo esteve rodeado e possuído pelas musas da música.
Desde tenra idade, decorava os hits do rádio, tocava piano em festinhas familiares, compunha cantigas ao violão e ia atrás de conhecer e se amigar com os melhores músicos de Liverpool: antes dos 16 anos de idade, já impressionava os músicos ao seu redor com suas versões bem-timbradíssimas de Eddie Cochran, Little Richard e Elvis Presley, dentre outros roqueiros das antigas. E logo o mocinho integraria a Banda de Besouros, a Banda do Sargento Pimento e do Submarino Amarelo, aquela que se tornaria um dos monumentos musicais mais importantes do século 20 e uma das cerejas no bolo do Sonho Hippie…
E hoje em dia, me parece, McCartney prossegue, apesar de ser um perfeito gentleman britânico, um hippão de coração. Talvez o hippie, neste planeta, com a maior conta bancária (sua fortuna é estimada em mais de U$1.000.000… um bilhão de doletas!), e cujo ideário hippie decerto não inclui como ideal norteante a pobreza voluntária. McCartney ainda fala em favor da legalização da maconha, que, conta a lenda, teria sido apresentado aos Beatles em 1964 por Bob Dylan, o que parece ter sido para Paul o início de um caso de amor de fidelidade ímpar, com o cânhamo sagrado, já que ele segue pró-cannabis mesmo tendo sido preso algumas vezes, em alguns países, por posse de fontes de THC. McCartney também ilita em prol dos direitos animais, sendo talvez o vegan com maior apelo de massas no atual showbizz global, capacitado para gerar discussão e debate público sobre um tema ainda tabu (os bilhões de criaturas mortas para serem consumidas por humanos na forma de hambúrgueres, salsichas e fatias de bacon).
Outro índice de hippiedade é que em muitas ocasiões ele já escancarou, em suas declarações, uma mui-hippie predileção intensa pela psicodelia. Teve uma experiência existencial significativa quando olhou através dos telescópios e microscópicos lisérgicos, nos anos 60, época em que ingeriu muitas doses da Poção de Hoffmann que o Dr. Leary andava louvando por aí (o LSD… homenageado singelamente em “Lucy in the Sky With Diamonds”, dentre outras cantigas). Os pendores de Paul McCartney ao louvor arrebatado e hiperbólico às substâncias psicodélicas ficam claros, por exemplo, em declarações como a seguinte, que foi pescada do Anthology e em que ele relata sua experiência com o LSD:
“After I took LSD, it opened my eyes: we only use one-tenth of our brain. Just think what we could all accomplish if we could only tap that hidden part. It would mean a whole new world. If the politicians would take LSD, there wouldn’t be any more war or poverty or famine.” (Anthology. Chronicle Books, San Francisco, Pg. 255.)
McCartney, hoje em dia? Um setentão que aguenta 3 horas de show sem precisar beber uma gota d’água. E esta turnê pelo Brasil, em 2013, certamente deixará lembranças indeléveis nos corações e mentes dos cerca de 150.000 brasileiros que o viram de perto em Belo Horizonte (no Mineirão), Goiânia (no Serra Dourada) e em Fortaleza (no Canecão).
Num espetáculo grandioso, cheio de pirotecnias, com psicodelia bem-bolada rolando nos telões, e acompanhado por uma bandaça impecável, Paul McCartney passou por Goiânia impressionando geral com sua vivacidade, sua simpatia e seu embriagante e revigorante tônico musical, bebido com tanta sede e deleite pelas massas-em-festa… Em suma: reativando a beatlemania nestas noites brasileiras repletas de histerias ultra-admirativas e aclamações esfuziantes, Macca encantou geral com sua voz e suas melodias, dando farto alimento à “imperecível necessidade humana” (pois nem só de pão vive o homem…) “de viver em beleza” – como diz no Homo Ludens o Huizinga.
[youtube=http://youtu.be/68T_XeFS_08]
“Goiânia Grasshopper Stage Invasion!”
Vídeo oficial do PaulMcCartney.com
Sem dúvida, o elemento pitoresco do show em Goiânia, e que ficará indelével na memória do público e do músico, foi a alegre invasão daqueles beatlemaníacos alados que não perderam a chance de fazer o que muito mortal fica só passando vontade: tocar a carne de um mito. Viraram até notícia internacional! Goiânia fez jus a sua fama de “roça asfaltada” e, ao mesmo tempo, esta imprevista irrupção de vida fez com que o ambiente, saturado da artificialidade ultra-tecnológica daquele palco hi-tech, se reconectasse com a natureza. Como notório defensor dos direitos dos animais, Paul McCartney em nenhum momento foi agressivo contra os visitantes inesperados – aliás bastante inofensivos, desprovidos que são de malícia e de ferrão. Ao invés de enxotá-los com tapões ou piparotes que poderiam equivaler, para tão frágeis criaturas, a severos hematomas, ou mesmo a golpes fatais, McCartney divertiu-se como um pirralho com os bichinhos – dotados, aliás, de excelente gosto musical.
Tem gente dizendo que eram grilos-esperança, outros que eram gafanhotos, outros ainda “insetos vetores”; pouco importa. O que importa é aquilo que o episódio revelou sobre a personalidade de Paul, seu espírito lúdico tão vivaz e seu senso-de-humor tão espontâneo. Também se tornou clara a capacidade enorme de empatia com outros terráqueos que é uma marca de personalidade de McCartney, que aliás criou uma das máximas mais célebres da história do vegetarianismo (que era também praticado por Linda): “se os abatedouros tivessem paredes de vidro, todos seriam vegetarianos”. O estádio Serra Dourada foi proibido de vender espetinhos de carne no espaço do show, por pedido do próprio McCartney, que é militante pelos direitos animais há muitos anos. O que se escancarou com este episódio é que não é somente em prol de vacas, bois, galinhas, porcos e perus – dentre outros animais que os humanos devoram! – que McCartney milita e defende. Que coerência genuína de pensamento e ação o episódio com os grasshoppers revelou!
Pego de surpresa, McCartney mostrou excelente capacidade de improviso: usou o acaso a seu favor e transformou os bichos numa atração à parte. Um deles (ou seria uma delas?), particularmente obstinado em manter-se coladinho no Beatle, foi batizado de Harold e convidado a saudar a platéia no microfone. Mas Harold se intimidou diante dos mais de 45 mil humanos presentes e manteve-se calado. Quando veio o clássico “Hey Jude”, um dos muitos ápices emocionais do show, com 40 mil vozes se juntando no coro de “nánáná”, ocorreu um momento mágico: o grasshopper beatlemaníaco estava pousado nos ombros de McCartney quando veio o verso “The movement you need is on your shoulder”, e Macca, veloz e sagaz, não perdeu a ocasião da alusão.
(Lembrei de uma das melhores cenas do documentário sobre Raul Seixas, O Início, o Fim e o Meio, quando o diretor Walter Carvalho recebeu, também, um presente do acaso muito bem aproveitado: entrevistando Paulo Coelho em Genebra, cidade onde quase não existem moscas, Carvalho viu o “set” ser invadido por uma inesperadíssima aparição alada; Paulo Coelho não perdeu a ocasião de apontar: “deve ser o Raul…”. Depois de ser esmagada a mosca pelo místico higienista, a sacada do documentário, aliás brilhante, está edição de som, que faz com que Raulzito, eterno mosca-na-sopa da caretice e do quadradismo, entre cantando logo na sequência: “E nem adianta vir me dedetizar… Pois você mata uma e vem em outra em seu lugar!”)
O que mais me assombra e me impressiona é uma pessoa com tamanha capacidade (intacta!) para as alegrias fáceis, para as cantorias vivazes, para as melodias memoráveis, quando sabemos quantas tragédias e lutos ele não teve que enfrentar nesta longa e tortuosa estrada da vida! Fora os horrores da guerra, experenciados na infância, que relatamos no começo desta gonzo trip, cabe lembrar que Paul, na adolescência, quando tinha 14 anos de idade, perdeu a mãe para o câncer – foi quando viu seu pai chorar pela primeira vez. Resistiu vivo através de outras tempestades, sobrevivendo ao assassinato que levou Lennon em 1980, ao câncer que matou sua esposa (e mãe de seus filhos) Linda em 1998, tendo também se despedido do caixão de George Harrison em 2001. É uma lição de vida testemunhar que nada disso aniquilou o senso de humor e a capacidade de empatia com os viventes deste artista com espírito perpétuo de menino e que encantou com sua graça os mais de 45 mil mortais que encheram o Serra Dourada para prestigiá-lo.
É bem verdade que este espetáculo Out There usa e abusa da pirotecnia, não economizando no tamanho dos telões, na coloridice extrema das imagens, na variedade de holofotes e luzes, na profusão de fogos de artifício e lançadores-de-chama (que fazem sua estrondosa aparição-clímax em “Live and Let Die”). Há algo de arrasa-quarteirão roliudiano no show, que pretende ser uma torrencial chuva de estímulos sensíveis sobre um público que McCartney deseja levar ao delírio, ao êxtase coletivo, depois recolhendo com deleite as aclamações, as salvas de palmas e os ursinhos de pelúcia lançados sobre o palco por mocinhas apaixonadas.
Um crítico de arte que conhecesse de Adorno e Horkheimer, que soubesse das críticas de Guy Debord à “sociedade do espetáculo”, talvez pudesse destroçar criticamente este show como mero showbusiness alienante, como uma criação do capitalismo hi-tech que serve para algo similar ao que o “Pão & Circo” fazia para o Império Romano. Acho plausível, aliás, que nosso governador tucano e cachoeirista, Marconi Perillo, tenha investido dinheiro público neste show com intenções de, através de uma pão-e-McCartney grandioso e crowd-pleaser, fazer com que os goianos esquecessem de suas tenebrosas e escusas relações com o Al Capone do Cerrado, o gangter Carlinhos Cachoeira, pra não falar do esquema de espionagem escancarado recentemente pela revista Carta Capital.
Só que, me parece, o show de McCartney jamais poderia ser reduzido a isso, um instrumento político na mão de um governo corrupto, pois é um evento cultural que transcende o presente: foi uma oportunidade de receber um “banho de imersão” na história da música pop inglesa em algumas de suas mais geniais criações nas últimas décadas, um embarque numa viagem que nos carrega de volta para os anos 60 e 70, que nos dá um vislumbre do que foi o frenesi da beatlemania, que nos deixa instigados a criar uma cultura cuja efervescência aspire a igualar aquela que incendiou o pop nos crazy sixties.
McCartney escapa do “imediatismo” do showbizz, que costuma dar ao público algo que ele possa consumir e logo esquecer (a fila das mercadorias anda!). McCartney parece desejar que cada um no público leve para casa uma lembrança indelével, algo a ser carregado pelo resto da vida, por isso não se economiza, não poupa seu coração, não retêm seu sentimento; sentimos algo de genuinamente humano e caloroso sobressaindo sobre aquela parafernália técnica toda. McCartney anda fazendo, ao vivo, um ritual auto-celebratório em que resgata seus mais de 70 anos de vida e seus quase 50 anos de carreira, arrastando o público numa jornada colorida, lisérgica, psicodélica, às vezes kitsch, sempre emotiva e emocionada, por uma vida cuja criatividade e talento os milhões de beatlemaníacos não param de celebrar.
Aliás, McCartney consegue muito bem, sem tecnologia pesada o acompanhando, encantar uma multidão com simplicidade e frugalidade: sozinho ao violão, quando canta “Blackbird” ou “Yesterday”, não precisa de pirotecnia alguma para nos deixar encantados. Na homenagem à imortal canção de George Harrison, “Something”, soube deixá-la graciosa em seu despojamento ao re-interpretá-la no ukelele.
Talvez tenha razão quem disse que a música é a única língua universal: Mozart ou Bach, tocados em qualquer latitude, em qualquer continente, independente do idioma que ali domine, são deleitáveis experiências para os tímpanos humanos; e “nánáná” em inglês, em japonês e em português é sempre “nánáná”. Os sons, como anarquistas desrespeitadores de todos os arames farpados, não respeitam as fronteiras: caçoam delas, velejando no vento, voando por sobre os muros e atravessando as paredes. Talvez não haja nada, dentre as criações humanas, nada com mais benéfico potencial de congraçamento do que a música. Quando 50 mil pessoas houvem a mesma música, no mesmo espaço, quando suas vozes se unem para cantar uma melodia, podem sentir-se unidas em um sentimento como só deve ocorrer em raríssimas ocasiões e para raríssimas massas, quiçá só equiparável à fervura de um levante revolucionário… O mínimo que se pode dizer de Sir Paul McCartney é que ele tem uma capacidade de comunicação afetiva com as massas que é rara; que sua música prossegue tendo uma graça que transborda e que não envelhece; que com mais de 70 anos, prossegue com espírito de menino, legítimo espécimen do homo ludens; que muitas de suas melodias tem vocação para a eternidade e muito provavelmente poderão agradar também a nossos bisnetos e tataranetos; e que os Beatles não deixarão mais a história da música do século 20 como um de seus acontecimentos mais dourados.
“And in the end
The love you take
Is equal to the love
You make.”
Siga viagem em outras criações do Mega-Macaco Macca…
ÁLBUNS DE ESTÚDIO (COMPLETOS)
Publicado em: 12/05/13
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia